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6 de novembro de 2024

Da educação do futuro orador

por Quintiliano

  • Literatura
  • História

1. Na maior parte das crianças não falta inteligência, e sim a aplicação.

Ao nascer um filho, o pai nele concentra todas as esperanças, visto que, desde o início, procura esmerar-se. Isto, porque é falsa a queixa de que são poucos os que podem aprender o que se lhes ensina e, se a maior parte, por sua pobreza de espírito, perde tempo e trabalho, é óbvio que, em outros, encontraremos facilidade de educação e apreensão, de memória, como que ambas as coisas são naturais, no ser humano.

Assim como a natureza criou as aves para voar, os cavalos para as corridas, as feras para serem bravias, também deu ao homem a faculdade da inteligência, razão por que consideramos celestial a origem da alma.

O nascimento de pessoas rudes, incapazes de aprender é tão contra a natureza, é frequente quanto o nascerem corpos disformes. Eis a prova: nas crianças, surgem esperanças de tanto futuro as quais, se desaparecem com a idade, é evidente que lhes faltou assistência e não entendimento. Aceita a ideia de que um seja mais inteligente de que o outro, isto será apenas para usar a expressão “mais ou menos”, mas não se encontrará nenhuma criança da qual não se consiga algo, à força de estudo. O pai que se detenha, que reflita sobre essa asserção, desde o início, usará o maior cuidado para aproveitar as esperanças daquele que está preparando a oratória.

2. Das amas, pais, preceptores e companheiros das crianças.

Antes de tudo, não deve ser eivada de erros a conversação dos preceptores, os quais Crisipo desejava que fossem sábios, se possível; se não, fossem escolhidos entre os melhores. Indubitavelmente, deve se cuidar que as amas tenham bons costumes e que saibam falar bem, porquanto são elas as primeiras pessoas que as crianças ouvem e cujas palavras se esforçarão em reproduzir, por imitação. Mesmo porque, é natural, conservamos o que aprendemos na primeira fase de nossa vida, como as vasilhas novas o aroma do primeiro licor que contiveram; da mesma maneira porque não se pode destruir a primitiva cor dos tecidos. E, quanto mais profundas forem esses maus hábitos, tanto mais fortemente se nos imprimirão. O bom, com facilidade, se transforma em vício; mas o vício… quando o mudarás em virtude? Não se deve, pois, habituar as crianças a uma linguagem que, mais tarde, precisarão desprender. […]

Se a alguém parece que peço muito, lembre-se que formar um orador é árdua empresa e, quando nada se omita para esse empreendimento, é muito mais e mais difícil o que fica por fazer. Isso acontece porque é indispensável um estudo ininterrupto com mestres, os melhores e de muito conhecimento. E, se alguém se recusar a ensinar, da melhor maneira, é porque o defeito está no homem e não no talento.

Mas, se não for exequível conseguir preceptores e companheiros, como desejo, ao menos haja um professor assíduo que tenha boa dicção e saiba corrigir, imediatamente, aqueles que, em presença do discípulo, cometem erros de pronúncia, não permitindo que se formem vícios de linguagem; tudo isso de modo que se chegue a entender que o meu primeiro conselho é o acertado e que, o que disse acima, é um remédio.

3. Deve-se começar o estudo pela língua grega.

A minha indicação é que a criança comece pela língua grega, pois a latina, sendo mais usada, já a aprendemos mesmo que não desejemos e, também, deve ser instruída a criança, primeiramente, nas letras e ciências gregas por causa da origem do nosso idioma. Mas não há premência em que isso se proceda tão escrupulosamente, que se fale e aprenda por muito tempo somente a língua grega, como alguns fazem, pois disso emanam muitos defeitos — não só na pronúncia diferente, como na linguagem — os quais arraigando-se, pelo longo tirocínio com a língua grega, acabam, também, por tornar o modo de falar estranho dos demais. E assim, ao estudo da língua grega, deve seguir-se o da latina, a fim de aprendê-las quase ao mesmo tempo. Sucederá, pois, que, dando-se ao aprendizado de ambas o mesmo cuidado, uma não prejudicará à outra.

4. As crianças têm capacidade de receber instrução antes dos setes anos… Não deve ser, porém, muito antecipada.

Pensaram alguns que as crianças, com menos de sete anos, não deviam aprender a ler, por não se idade capaz de instrução nem de aptidão para o trabalho, parecer seguido pro Hesíodo, segundo dizem muitos anteriores ao gramático Aristófanes. […]

Não pensem que ignoro o que seja cada idade e julgue que se deva oprimir, exigindo um trabalho formal nos primeiros anos. Devemos, sim, é ter muito cuidado para que a criança não aborreça o estudo, pelo qual ainda não pode ter inclinação, a ponto de, depois, virar nele aversão. Tudo deve ser processado como se fora um jogo: a criança é solicitada, é elogiada e, muitas vezes, alegramo-nos o pouco que sabe.

Com a promessa de formardes um orador, ensinastes coisas sem importância, dirão alguns; mas deveis saber que, também as letras têm infância e que, assim como a formação dos organismos, para serem robustos, começa no berço, assim aquele que há de ser um orador eloquente, faz, a seu tempo, suas manhas, balbuciou as palavras e traçou garatujas ao aprender a escrever.

5. Do ler e escrever.

A mim, pelo menos, não me agrada o que vejo muitos praticarem; ensinar o nome e a ordem das letras antes de ensinar-lhes a configuração. Isto dificulta o conhecimento delas, visto que seguindo-se o som de cada uma, não será dada a devida atenção à sua forma. Esta é a razão pela qual os mestres, quando pensavam havê-las fixado na memória dos alunos, seguindo a ordem alfabética, voltavam atrás, ordenando-as de outra maneira e dando-lhes a conhecer as letras por sua forma e não pela ordem natural. Daí ser-lhes ensinado a imagem e o nome das letras como conhecem as pessoas. Mas, o que prejudica o conhecimento das letras, sabe-se, não prejudicará o das sílabas.

Para estimular a criança a aprender, aprovo o método de formar jogos com as letras em marfim, madeira, papel lixa, ou também algum outro meio de acordo com a idade e, com o qual, sintam prazer em manejar, olhar e chamar pelo nome. Quando começar a escrever, não será desinteressante gravar as letras em um quadro de madeira para que acompanhe, com o lápis, os contornos, nos rabiscos que faz. Assim não errará, como aconteceria se os moldes fossem em cera, nem se desviará da maneira por que foram escritas. De outro lado, exercitando continuadamente e com rapidez, os traços fixos, firmará os dedos, não precisando colocar uma mão sobre a outra, como garantia. […]

Para as sílabas não é tão indispensável livro, pois devem ser todas aprendidas e não há tanta necessidade de estender o conhecimento das mais difíceis, como fazem comumente, para quando forem escritas, serem mais depressa percebidas. Além do que foi dito, não á muito que confiar no que as crianças aprendem, da primeira vez. Antes, será muito útil repetir e não apressá-las, para que leiam, de início, correntemente, e sim quando juntarem as letras sem embaraço, sem parar e nem pensar demais. Unindo, então, as sílabas abrangerão toda a palavra e, depois, começarão com elas, a formar frases. É incrível quanta inibição no ler ocasiona a pressa, nascendo, daí, o titubear, o deter-se e o repetir os vocábulos. E, se chegam a errar algo, quando se atrevem a fazer mais do que podem, desconfiam, então, do que sabem. Que leiam sem emendas e sem interrupção, porém, com pausa, até que com exercício cheguem a ler com correção a rapidez. Olhar para frente e ver a palavra que se segue (regras que todos os mestres são) não só é o que ensina o método com a prática, porque quando se olha o que se segue, pronuncia-se o primeiro e a atenção do indivíduo divide-se, aliás cousa mui difícil. Dessa forma, os olhos terão um trabalho e a voz, outro. Quando a criança começar a escrever, não lamentemos a preocupação que tivemos em evitar que perca tempo com vocábulos comuns e que ocorrem diariamente. Pode ir ainda aprendendo enquanto se ocupa de outra coisa, a interpretar palavras mais desconhecidas da língua, a que os gregos chamam de “glossas” e conseguir com esses primeiros elementos o que depois lhe há de tomas algum tempo. E, já que me detenho em minúcias, desejaria que os cartazes apresentados às crianças contenham sentenças úteis, bons conselhos, porque a sua recordação durará até a velhice. E, ao fixarem-se numa inteligência, ainda vazia de ideias, serão melhor aproveitadas para a formação de hábitos e atitudes. Podem também ser conhecidos, daquela forma, conceitos de homens ilustres, trechos escolhidos, principalmente de poetas, coisas que agradam muito, nessa fase. A memória é muito útil ao orador e ela se cultiva e se afirma com o exercício; e essa é a maneira mais sutil com que o mestre pode tirar proveito, numa idade em que as crianças ainda não podem inventar algo.

Não será inútil, para que consigam uma dicção clara e desembaraçada, fazê-las repetir palavras difíceis, pesquisadas com esse fim, e sentenças formadas de vocábulos ásperos e que se confundam entre si, (os gregos chamam-nos de “enredosos”) obrigando-as a pronunciá-los rapidamente. Parece futilidade, à primeira vista; mas, isto, omitido, encherá a pronúncia com vícios que, não corrigidos, nos primeiros anos, durarão eternamente.

Sobre o autor

Orador, mestre da retórica e advogado romano.